domingo, 20 de julho de 2014

Glória da manhã, Rubem Alves


Plantei na frente da minha casa, uma trepadeira. Nome bonito: “Glória da Manhã”. Pensei que o ipê, que neste período do ano está triste e sem cores, se alegraria se o seu tronco cinza se cobrisse de flores azuis. E assim foi. As sementes germinaram rápidas, os ramos cresceram esguios e sinuosos, e a rua se encheu logo de uma cor nova...
Acho esta flor muito especial.
Primeiro, pela beleza. Simetria pentagonal, quase circular. Uma única pétala, em forma de cálice. E o azul claro, quase transparente. Ela se abre logo que o sol aparece. Daí o seu nome, “Glória da Manhã”.
Isso tudo é alegria. Walt Whitmann dizia que uma “Glória da Manhã” na sua janela lhe trazia mais prazer que todos os livros de filosofia. Com o que eu concordo. Porque aquela flor fala alguma coisa. Nós sempre conversamos...
Mas há uma tristeza: é efêmera. Lá pelas doze horas, quando o calor é mais intenso, começam a aparecer no azul sinistras estrias roxas, sinal de que o fim está chegando. Sua vida não dura mais que sete horas. Logo a pétala se enruga, murcha, enrola-se, torna-se toda roxa. Morreu. Nunca mais. Se o Vinícius a tivesse visto talvez tivesse mudado o seu poema: “Não é eterna, posto que é flor, mas é infinita enquanto dura...” Comove-me a sua tranqüila beleza pela manhã – sem saber que em breve estará morta. Ou saberá? Talvez seja por isto mesmo, por saber, que ela se abre com beleza tão intensa... Sabe que não há tempo a perder, que é inútil lamentar, que só lhe resta ser bela. Fico pensando se o mesmo não aconteceria conosco. Talvez, se percebêssemos que somos efêmeros como a “Glória da Manhã”, seríamos tão belos quanto ela. Mas a manhã seguinte nos reserva uma surpresa. Porque a trepadeira que viu morrer, na véspera, as dezenas de flores que a cobriam, já se havia preparado. E outras tantas se abrem de novo, ao nascer do sol, repetindo a mesma beleza, a mesma tristeza, como se fosse um tema que se renova sem cessar: vida e morte, vida e morte...
Gostaria de poder ser como ela: viver intensamente o momento que me é dado, fiel apenas à beleza que mora em mim.
Disse que plantei. Ela nasceu, cresceu, floriu. Acho que alegrou muitos que por ali passaram. Mas alguém se ofendeu com beleza tanta. E a arrancou. Tentei replantá-la, mas foi inútil. A vida, por vezes, é assim. Dado o golpe letal, ela não se recupera. Pensei nessa absurda assimetria entre a vida e a morte. A vida, para ser, leva tempo, demanda paciência, exige cuidados, há que se esperar. Mas a morte vem súbita e definitiva. Uma árvore leva anos a crescer. O machado a abate em poucos minutos. Espantou-me uma coisa inesperada: que ela continuou a florescer mesmo depois de cortada, por dois dias. Imaginei que o seu desejo de viver era de tal forma intenso que ela ajuntou a pouca seiva que restara n os seus ramos e floriu de novo, a mesma beleza, sem nenhuma mágoa, sem nenhum espinho. Lembrei-me do poema da Cecília Meireles:


“Sede assim – qualquer coisa serena, isenta, fiel. Flor que se cumpre sem pergunta”.


A morte me entristeceu. Não a morte que acontece, depois de sete horas de vida, quando a flor já cumpriu o seu destino. Mas a morte que mora na alma dos homens. De que coisas não é capaz uma pessoa que destrói uma flor...
Mas não importa.
Guardei as sementes.
E já semeei de novo.
Em breve haverá uma outra “Glória da Manhã”, em volta
do mesmo ipê.
É Domingo de Páscoa.
Triunfo da vida sobre a morte.
Um bom dia para semear uma flor...

Rubem Alves

In: Tempus Fugit, Rubem Alves, Ed. Paulus - páginas: 50 à 52.


Homenagem de minha querida prima Elo Portes Teixeira pela passagem de seu amigo Rubem Alves (15/09/1933 - 19/07/2014).

"Meu amigo... Vai na Luz, com a Luz que você é! Mergulha na Luz que você sempre viu nos ipês e e em todos os jardins da natureza... Segue para a Luz, a Fonte, na paz dos que entregaram o coração ao amor, que você foi esse cara, meu amigo, você viveu o Amor como só você sabe... e Deus... 
Pra viver a vida, você dizia, tinha que ter "aligria". Sem "aligria" nada tem graça.. E você dizia assim mesmo, com o seu sotaque mineirez, "aligria" . Não esqueço que você me olhava e ria pra mim me dizendo que eu era uma "aligria"... Pois é com a "aligria" que você via em mim, que eu te honro hoje meu amigo lindo, mestre que me ensinou do que era e não só do que sabia... Guru dos versos que iluminaram tantas escuridões das minhas ignorâncias.. Te amo amigo. Amor é o elo eterno na roda da Vida que somos, para sempre.. 
Vê? É isso a eternidade... Você aí agora, e aqui ainda, no meu coracão.. 
Estou na praia hoje, quando soube que você tinha se transformado em pássaro dourado... De uma vez que você esteve aqui na praia, em estado de amor, você me deixou de presente um barquinho de vidro colorido, embrulhado numa cartinha que dizia que o amor é o melhor dos dons... Uma canoinha com vela, pra ir no vento... Ah mestre canoeiro Rubem Alves, que "dilícia" foi ser canoeira com você na terceira margem do rio de nossas vidas ... Que profunda gratidão me invade o peito, meu amigo, por tudo o que Os Canoeiros viveram ali, na beira do rio da poesia e do sentimento, junto com você...
Com "aligria" te honro, amigo. Ergo as mãos em bençãos do coracão ao primeiro voo seu nessa nova Vida, aí do outro lado. Vai amigo lindo! Vai! Voa! Tudo está cumprido! Tudo está perfeito! Como um ipê florido! Como um flamboyant vermelho na florada!
Namastê Rubem Alves! Namastê!"

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