quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Canção amiga, Carlos Drummond de Andrade

Abraço amoroso, Frida Khalo



Eu preparo uma canção 
em que minha mãe se reconheça, 
todas as mães se reconheçam, 
e que fale como dois olhos. 

Caminho por uma rua 
que passa em muitos países. 
Se não me vêem, eu vejo 
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo 
como quem ama ou sorri. 
No jeito mais natural 
dois carinhos se procuram. 

Minha vida, nossas vidas 
formam um só diamante. 
Aprendi novas palavras 
e tornei outras mais belas. 

Eu preparo uma canção 
que faça acordar os homens 
e adormecer as crianças.


Carlos Drummond de Andrade
In Novos Poemas
José Olympio, 1948


bela “Canção Amiga", poema do Mineiro Carlos Drummond de Andrade. Os versos foram musicados por Milton Nascimento - o carioca mais mineiro da MPB. A música foi gravada no disco Clube da Esquina 2, EMI, de 1978.

Ouça também
http://www.youtube.com/watch?v=GT9_1XR0oEo

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Da felicidade, Mário Quintana




Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!

Mário Quintana

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Com licença poética, Adélia Prado


Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo.  Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.


Adélia Prado

In Adélia Prado, "Poesia Reunida", Siciliano, São Paulo, 1991.

Leia mais sobre Adélia Prado:

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ad%C3%A9lia_Prado


O poema de Adélia foi inspirado no "Poema de Sete Faces" (1930) de Carlos Drummond de Andrade.

Leia o poema original:
http://decarlicris.blogspot.com.br/2012/12/poema-de-sete-faces-carlos-drummond-de.html

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Diálogo, Helena Kolody



Debruçados sobre a vida,
indagamos seus mistérios
e raramente alcançamos
suas respostas cifradas.

Ao calor do interrogar-se
nuvens ocultas esgarçam-se,
a luz em nós amanhece.

Helena Kolody

http://pt.wikipedia.org/wiki/Helena_Kolody

domingo, 27 de janeiro de 2013

A menina e o pássaro encantado, Rubem Alves




Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.
Ele era um pássaro diferente de todos os demais: era encantado.
Os pássaros comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão-se embora para nunca mais voltar. Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades… As suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava. Certa vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão…
 Menina, eu venho das montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que vi, como presente para ti…
E, assim, ele começava a cantar as canções e as histórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.
Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.
 Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. As minhas penas ficaram como aquele sol, e eu trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.
E de novo começavam as histórias. A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isto voltava sempre.
Mas chegava a hora da tristeza.
 Tenho de ir  dizia.
 Por favor, não vás. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar…— E a menina fazia beicinho…
— Eu também terei saudades  dizia o pássaro. — Eu também vou chorar. Mas vou contar-te um segredo: as plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera do regresso, que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um pássaro encantado. E tu deixarás de me amar.
Assim, ele partiu. A menina, sozinha, chorava à noite de tristeza, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela teve uma ideia malvada: “Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para sempre. Não mais terei saudades. E ficarei feliz…”
Com estes pensamentos, comprou uma linda gaiola, de prata, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Ele chegou finalmente, maravilhoso nas suas novas cores, com histórias diferentes para contar. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola, para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.
Acordou de madrugada, com um gemido do pássaro…
 Ah! menina… O que é que fizeste? Quebrou-se o encanto. As minhas penas ficarão feias e eu esquecer-me-ei das histórias… Sem a saudade, o amor ir-se-á embora…
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas não foi isto que aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar.
Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo…
Até que não aguentou mais.
Abriu a porta da gaiola.
 Podes ir, pássaro. Volta quando quiseres…
 Obrigado, menina. Tenho de partir. E preciso de partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro de nós. Sempre que ficares com saudade, eu ficarei mais bonito. Sempre que eu ficar com saudade, tu ficarás mais bonita. E enfeitar-te-ás, para me esperar…
E partiu. Voou que voou, para lugares distantes. A menina contava os dias, e a cada dia que passava a saudade crescia.
 Que bom  pensava ela  o meu pássaro está a ficar encantado de novo…
E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos, e penteava os cabelos e colocava uma flor na jarra.
 Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje…
Sem que ela se apercebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o pássaro. Porque ele deveria estar a voar de qualquer lado e de qualquer lado haveria de voltar. Ah!
Mundo maravilhoso, que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama…
E foi assim que ela, cada noite, ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe se ele voltará amanhã….”
E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.
* * *

Para o adulto que for ler esta história para uma criança:
Esta é uma história sobre a separação: quando duas pessoas que se amam têm de dizer adeus…
Depois do adeus, fica aquele vazio imenso: a saudade.
Tudo se enche com a presença de uma ausência.
Ah! Como seria bom se não houvesse despedidas…
Alguns chegam a pensar em trancar em gaiolas aqueles a quem amam. Para que sejam deles, para sempre… Para que não haja mais partidas…
Poucos sabem, entretanto, que é a saudade que torna encantadas as pessoas. A saudade faz crescer o desejo. E quando o desejo cresce, preparam-se os abraços.
Esta história, eu não a inventei.
Fiquei triste, vendo a tristeza de uma criança que chorava uma despedida… E a história simplesmente apareceu dentro de mim, quase pronta.
Para quê uma história? Quem não compreende pensa que é para divertir. Mas não é isso.
É que elas têm o poder de transfigurar o quotidiano.
Elas chamam as angústias pelos seus nomes e dizem o medo em canções. Com isto, angústias e medos ficam mais mansos.
Claro que são para crianças.
Especialmente aquelas que moram dentro de nós, e têm medo da solidão…

Rubem Alves

In "A menina e o pássaro encantado",  21a. edição, Rubem Alves. Edições Loyola.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Para fazer uma campina, Emily Dickinson



Para fazer uma campina
basta um só trevo e uma abelha.
Trevo, abelha e fantasia.
Mas na falta de abelha,
basta a fantasia.


Emily Dickinson

Emily Elizabeth Dickinson (Amherst, 10 de dezembro de 1830 - 15 de maio de 1886) foi uma poetisa americana, considerada moderna em vários aspectos da sua obra.

Leia mais
http://pt.wikipedia.org/wiki/Emily_Dickinson

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

Passa uma borboleta, Alberto Caeiro


Flor Borboleta (Clerodendrum ugandense)


Passa uma borboleta por diante de mim 
E pela primeira vez no Universo eu reparo 
Que as borboletas não têm cor nem movimento, 
Assim como as flores não têm perfume nem cor. 
A cor é que tem cor nas asas da borboleta, 
No movimento da borboleta o movimento é que se move, 
O perfume é que tem perfume no perfume da flor. 
A borboleta é apenas borboleta 
E a flor é apenas flor.

Alberto Caeiro 
07-05-1914

in "O Guardador De Rebanhos" poema XL.

Alberto Caeiro da Silva (Lisboa, 16 de Abril de 1889 ou Agosto de 1887 – Junho de 1915) foi um personagem ficcional (heterônimo) criada por Fernando Pessoa, sendo considerado o Mestre Ingenuo dos restantes heterônimos (Álvaro de Campos e Ricardo Reis) e do seu próprio autor, apesar de apenas ter feito a instrução primária.
Foi um poeta ligado à natureza, que despreza e repreende qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão ("pensar é estar doente dos olhos"). Proclama-se assim um anti-metafísico. Afirma que, ao pensar, entramos num mundo complexo e problemático onde tudo é incerto e obscuro. À superfície é fácil reconhecê-lo pela sua objetividade visual, que faz lembrar Cesário Verde, citado muitas vezes nos poemas de Caeiro por seu interesse pela natureza, pelo verso livre e pela linguagem simples e familiar. Apresenta-se como um simples "guardador de rebanhos" que só se importa em ver de forma objetiva e natural a realidade. É um poeta de completa simplicidade, e considera que a sensação é a única realidade.

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quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Perguntei à terra, Santo Agostinho



Perguntei à terra,
perguntei ao mar e profundezas,
entre os animais viventes, às coisas que rastejam.
Perguntei aos ventos que sopram aos céus,
ao sol, à lua, às estrelas,
e a todas as coisas que se encontram às portas da minha carne:
Minha pergunta era o olhar com que as olhava.
Sua resposta era a sua beleza...


Santo Agostinho

In "Confissões", Santo Agostinho, Petrópolis, 2001.

Poema citado no livro "Variações do Prazer", Rubem Alves. Ed. Planeta - p.93

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Acordei Bemol, Paulo Leminski

Face Violin Sky Head, Rafal Olbinski




Acordei bemol
tudo estava sustenido 
sol fazia
só não fazia sentido



Paulo Leminski

Paulo Leminski Filho (Curitiba, 24 de agosto de 1944 — Curitiba, 7 de junho de 1989) foi um escritor, poeta, crítico literário, tradutor e professor brasileiro. Era, também, faixa-preta de judô.

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terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Ver um mundo, William Blake




 "Ver um mundo em um grão de areia/
 e um céu numa flor selvagem/
 é ter o infinito na palma da mão/
 e a eternidade em uma hora".
 


William Blake


William Blake (Londres, 28 de novembro de 1757 — Londres, 12 de agosto de 1827) foi um poeta, tipógrafo e pintor inglês, sendo sua pintura definida como pintura fantástica.

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http://pt.wikipedia.org/wiki/William_Blake 



 In "Auguries of Innocence" of the: "Songs and Ballads"

Original

To see a World in a Grain of Sand / And a Heaven in a Wild Flower / Hold Infinity in the palm of your hand / And Eternity in an hour.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Espetáculo da vida, João Cabral de Melo Neto

imagem hypertextopia.com



"...E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina."


João Cabral de Melo Neto 

In "Morte e Vida Severina"

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domingo, 20 de janeiro de 2013

Orfandade, Adélia Prado

Dolce far Niente - John William Waterhouse



Meu Deus,
me dá cinco anos.
Me dá um pé de fedegoso com formiga preta,
me dá um Natal e sua véspera,
o ressonar das pessoas no quartinho.
Me dá a negrinha Fia pra eu brincar,
me dá uma noite pra eu dormir com minha mãe.
Me dá minha mãe, alegria sã e medo remediável,
me dá a mão, me cura de ser grande,
ó meu Deus, meu pai,
meu pai.


Adélia Prado 

In "Bagagem", Editora Guanabara, p. 22


 Adélia Luzia Prado Freitas (Divinópolis, 13 de dezembro de 1935) é uma escritora brasileira. Os textos retratam o cotidiano com perplexidade e encanto, norteados pela fé cristã e permeados pelo aspecto lúdico, uma das características de seu estilo único.
Professora por formação, exerceu o magistério durante 24 anos, até que a carreira de escritora tornou-se a atividade central.
Em termos de literatura brasileira, o surgimento da escritora representou a revalorização do feminino nas letras e da mulher como ser pensante, tendo-se em conta que Adélia incorpora os papéis de intelectual e de mãe, esposa e dona-de-casa.

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sábado, 19 de janeiro de 2013

Nalgum lugar em que nunca estive, e.e. cummings




nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
de qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado, eu e
minha vida nos fecharemos belamente, de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade: cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre; só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas!


e. e. cummings

Edward Estlin Cummings, usualmente abreviado como e. e. cummings, em minúsculas, como o poeta assinava e publicava, (Cambridge, Massachusetts, 14 de outubro de 1894 — North Conway, Nova Hampshire, 3 de setembro de 1962) foi poeta, pintor, ensaísta e dramaturgo americano. Tendo sido, principalmente, poeta, é considerado por Augusto de Campos um dos principais inovadores da linguagem da poesia e da literatura no século XX.


Tradução: Augusto de Campos

Ouça também na voz de Zeca Baleiro, Nalgum lugar

http://www.youtube.com/watch?v=FSCJlsgz6L8 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Dentro de você, Santa Teresa de Ávila

Art by Helen Klebesadel


Este magnífico refúgio está dentro de você.
Entra. Quebra a escuridão que envolve a entrada...
Seja ousado. Seja humilde.
Ponha de lado o incenso e esqueça
os encantamentos que ensinaram a você.
Sem pedir permissão das autoridades.
Feche os olhos e siga sua respiração
para o lugar ainda que leva para o
caminho invisível que te leva para casa.


Santa Teresa de Ávila


Santa Teresa de Ávila ou Teresa de Jesus (Gotarrendura, 28 de março de 1515 — Alba de Tormes, 4 de outubro de 1582) foi uma religiosa e escritora espanhola, famosa pela reforma que realizou na Ordem dos Carmelitas e pelas suas obras místicas. Foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa Paulo VI.


Leia mais
http://pt.wikipedia.org/wiki/Teresa_de_%C3%81vila 


This magnificent refuge is inside you.
Enter. Shatter the darkness that shrouds the doorway…
Be bold. Be humble.
Put away the incense and forget
the incantations they taught you.
Ask no permission from the authorities.
Close your eyes and follow your breath
to the still place that leads to the
invisible path that leads you home.
~ St. Theresa of Avila 


Fonte:  http://shamantube.com

Inspirada na mensagem recebida do querido amigo Satbodhi Lisboa.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Lição, Helena Kolody

criança orando, Betina Pinto


A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.


Helena Kolody 


In “Poesias escolhidas” - (em português e ucraniano).

Helena Kolody (Cruz Machado, 12 de outubro de 1912 — Curitiba, 15 de fevereiro de 2004) foi uma poetisa brasileira.

Leia Mais
http://pt.wikipedia.org/wiki/Helena_Kolody

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Como nasceu a alegria, Rubem Alves


Você pode não acreditar, mas é verdade: muitos anos atrás a terra era um jardim maravilhoso.
É que os anjos, ajudados pelos elefantes, regavam tudo, com regadores cheios de água que eles tiravam das nuvens. Esta era a sua primeira tarefa, todo dia.
Se esquecessem, todas as plantas morreriam, secas, estorricadas... Para que isso não acontecesse, Deus chamou o galo e lhe disse:
- Galo, logo que o sol aparecer, bem cedinho, trate de cantar bem alto para que os anjos e os elefantes acordem...
E é por isto que, ainda hoje, os galos cantam de manhã...
Flores havia aos milhares. Todas eram lindas. Mas, infelizmente, todas elas eram igualmente vaidosas e cada uma pensava ser a mais bela. E, exibindo as suas pétalas, umas para as outras, elas se perguntavam, sem parar:
- Não sou a mais linda de todas? Até pareciam a madrasta da Branca de Neve.
Por causa da vaidade, nenhuma delas ouvia o que as outras diziam e nem percebiam que todas eram igualmente belas. Por isso, todas ficavam sem resposta.
E eram, assim, belas e infelizes.
No meio de tanta beleza infeliz, entretanto, certo dia uma coisa inesperada aconteceu.
Uma florinha, que estava crescendo dentro de um botão, e que deveria ser igualmente bela e infeliz, cortou uma d e suas pétalas num e spinho, ao nascer.A florinha nem ligou e vivia muito feliz com sua pétala partida. Ela não doía. Era uma pétala macia. Era amiga.
Até que ela começou a notar que as outras flores a olhavam com olhos espantados. E percebeu, então, que era diferente.
- Por que é que as outras flores me olh am assim, papai, com tanto espanto, olhos tão fixos na minha pétala...?
- Por que será? Que é que você acha?, perguntou o pai.
Na verdade, ele bem sabia de tudo. Mas ele não queria dizer. Queria que a florinha tivesse coragem para olhar para as vaidosas e amar a sua pétala.
- Acho que é porque eu sou meio esquisita..., a florinha respondeu.
E ela foi ficando triste, triste... Não por causa da sua pétala rachada, mas por causa dos olhos das outras flores.
- Já estou cansada de explicar. Eu nasci ass im... Mas elas perguntam, perguntam, perguntam...
Até que ela chorou. Coisa que nunca tinha acontecido com as flores belas e infelizes.
A terra levou um susto quando sentiu o pingo de uma lágrima quente, porque as outras flores não choravam. E ela chamou a árvore e lhe contou baixinho:
- A florinha está chorando. E a terra chorou também. A árvore chamou os pássaros e lhes contou o que estava acontecendo. E, enquanto falava, foi murchando, esticando seus galhos num longo lamento, e continua a chorar até hoje, à beira dos rios e dos lagos, aquela árvore triste que tem o nome de chorão. E das pontas dos seus galhos correram as lágrimas que se transformaram num fiozinho de água...Os pássaros voaram até as nuvens.
- Nuvens, a florinha está chorando. E choraram lágrimas que se transformaram em pingos de chuva... As nuvens choraram também, juntando-se aos pássaros numa chuva enorme, choro do céu. As lágrimas das nuvens molharam as camisolas dos anjinhos que brincavam no céu macio.
E quiseram saber o que estava acontecendo. E quando souberam que a florinha estava chorando, choraram também... E Deus, que era uma flor, começou a chorar também.
E a sua dor foi tão grande que, devagarinho, como se fosse espinho, ela foi cortando uma de suas pétalas. E Deus ficou tal e qual a florinha.
E aquele choro todo, da terra, das árvores, dos pássaros, dos anjos, de Deus, virou chuva, como nunca havia caído.
O sol, sempre amigo e brincalhão, não agüentou ver tanta tristeza. Chorou também. E a sua boca triste virou o arco-íris...
E as chuvas viraram rios e os rios viraram mares. Nos rios nasceram peixes pequenos.
Nos mares apareceram os peixes grandes.
A florinha abriu os olhos e se espantou com todo aquele reboliço. Nunca pensou que fosse tão querida. E a sua tristeza foi virando, lá dentro, uma espécie de cócega no coração, e sua boca se entortou para cima, num riso gostoso...
E foi então que aconteceu o milagre.
As flores belas e infelizes não tinham perfume, porque nunca riam.
Quando a florinha sorriu, pela primeira vez, o perfume bom da flor apareceu.
O perfume é o sorriso da flor. E o perfume foi chamando bichos e mais bichos...
Vieram as abelhas... Vieram os beija-flores... Vieram as borboletas... Vieram as crianças.
Um a um, beijaram a única flor perfumada, a flor que sabia sorrir.
E sentiram, pela primeira vez, que a florinha, lá dentro do seu sorriso, era doce, virava mel...
Esta é a estória do nascimento da alegria. De como a tristeza saiu do choro, do choro surgiu o riso e o riso virou perfume.A florinha não se esqueceu de sua pétala partida.
Só que, deste dia em diante, ela não mais sofria ao olhar para ela, mas a agradava, como boa amiga. Quanto aos regadores dos anjos, nunca mais foram usados.
De vez em quando, olhando para as nuvens, a gente vê um deles, guardado lá dentro, já velho e coberto de teias de aranha...
Enquanto a florinha de pétala partida estiver neste mundo, a chuva continuará a cair e o brinquedo de roda em volta do seu sorriso e do seu perfume não terá fim.


Rubem Alves

In "Como nasceu a alegria", Rubem Alves, Paulus.

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http://www.rubemalves.com.br/

domingo, 13 de janeiro de 2013

O meu olhar, Alberto Caeiro

foto de Claudia Casella


O meu olhar é nítido como um girassol. 
Tenho o costume de andar pelas estradas 
Olhando para a direita e para a esquerda, 
E de, vez em quando olhando para trás... 
E o que vejo a cada momento 
É aquilo que nunca antes eu tinha visto, 
E eu sei dar por isso muito bem... 
Sei ter o pasmo essencial 
Que tem uma criança se, ao nascer, 
Reparasse que nascera deveras... 
Sinto-me nascido a cada momento 
Para a eterna novidade do Mundo... 

Creio no mundo como num malmequer, 
Porque o vejo. Mas não penso nele 
Porque pensar é não compreender... 

O Mundo não se fez para pensarmos nele 
(Pensar é estar doente dos olhos) 
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo... 

Eu não tenho filosofia: tenho sentidos... 
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, 
Mas porque a amo, e amo-a por isso, 
Porque quem ama nunca sabe o que ama 
Nem sabe por que ama, nem o que é amar... 
Amar é a eterna inocência, 
E a única inocência não pensar...


Alberto Caeiro 
08-03-1914


in "O Guardador De Rebanhos", poema II.


Alberto Caeiro da Silva (Lisboa, 16 de Abril de 1889 ou Agosto de 1887 – Junho de 1915) foi um personagem ficcional (heterônimo) criada por Fernando Pessoa, sendo considerado o Mestre Ingenuo dos restantes heterônimos (Álvaro de Campos e Ricardo Reis) e do seu próprio autor, apesar de apenas ter feito a instrução primária.
Foi um poeta ligado à natureza, que despreza e repreende qualquer tipo de pensamento filosófico, afirmando que pensar obstrui a visão ("pensar é estar doente dos olhos"). Proclama-se assim um anti-metafísico. Afirma que, ao pensar, entramos num mundo complexo e problemático onde tudo é incerto e obscuro. À superfície é fácil reconhecê-lo pela sua objetividade visual, que faz lembrar Cesário Verde, citado muitas vezes nos poemas de Caeiro por seu interesse pela natureza, pelo verso livre e pela linguagem simples e familiar. Apresenta-se como um simples "guardador de rebanhos" que só se importa em ver de forma objetiva e natural a realidade. É um poeta de completa simplicidade, e considera que a sensação é a única realidade.

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Alberto_Caeiro




sábado, 12 de janeiro de 2013

O mundo não é maternal, Martha Medeiros





É bom ter mãe quando se é criança, e também quando se é adulto. Quando se é adolescente a gente pensa que viveria melhor sem ela, mas é erro de cálculo. Mãe é bom em qualquer idade. Sem ela, ficamos órfãos de tudo, já que o mundo lá fora não é nem um pouco maternal conosco.
O mundo não se importa se estamos desagasalhados e passamos fome. Não liga se virarmos a noite na rua, não dá a mínima se estamos acompanhados por maus elementos. O mundo quer defender o seu, não o nosso.
O mundo quer que a gente fique horas no telefone, torrando dinheiro. Quer que a gente case logo e compre um apartamento que vai nos deixar endividados por vinte anos. O mundo quer que a gente ande na moda, que a gente troque de carro, que a gente tenha boa aparência e estoure o cartão de crédito. Mãe também quer que a gente tenha boa aparência, mas está mais preocupada com o nosso banho, com os nossos dentes e nossos ouvidos, com a nossa limpeza interna: não quer que a gente se drogue, que a gente fume, que a gente beba.
O mundo nos olha superficialmente. Não consegue enxergar através. Não detecta nossa tristeza, nosso queixo que treme, nosso abatimento. O mundo quer que sejamos lindos, sarados e vitoriosos para enfeitar a ele próprio, como se fôssemos objetos de decoração do planeta. O mundo não tira nossa febre, não penteia nosso cabelo, não oferece um pedaço de bolo feito em casa.
O mundo quer nosso voto, mas não quer atender nossas necessidades. O mundo, quando não concorda com a gente, nos pune, nos rotula, nos exclui. O mundo não tem doçura, não tem paciência, não pára para nos ouvir. O mundo pergunta quantos eletrodomésticos temos em casa e qual é o nosso grau de instrução, mas não sabe nada dos nossos medos de infância, das nossas notas no colégio, de como foi duro arranjar o primeiro emprego. Para o mundo, quem menos corre, voa. Quem não se comunica se trumbica. Quem com ferro fere com ferro será ferido. O mundo não quer saber de indivíduos, e sim, de slogans e estatísticas.
Mãe é de outro mundo. É emocionalmente incorreta, exclusivista, parcial, metida, brigona, insistente, dramática, chega a ser até corruptível se oferecermos em troca alguma atenção. Sofre no lugar da gente, se preocupa com detalhes e tenta adivinhar todas as nossas vontades, enquanto o mundo propriamente dito exige eficiência máxima, seleciona os mais bem-dotados e cobra caro pelo seu tempo. Mãe é de graça.

Martha Medeiros

In "Non Stop" (2000) - Crônicas

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sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Cigarra, Matsuo Bashô




casca oca:
a cigarra
cantou-se toda.


Matsuo Bashô

Matsuo Bashô (Tóquio, 1644 – Osaka, 12 de Outubro de 1694), ou simplesmente Bashō, foi o poeta mais famoso do período Edo no Japão. Durante sua vida, Bashô foi reconhecido por seus trabalhos colaborando com a forma haikai no renga. Atualmente, após séculos de comentários, é reconhecido como um mestre da sucinta e clara forma haikai. Sua poesia é reconhecida internacionalmente e dentro do Japão muitos dos seus poemas são reproduzidos em monumentos e locais tradicionais. Foi ele quem codificou e estabeleceu os cânones do tradicional haikai japonês.

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Matsuo_Bash%C5%8D

"Foi isso que Bashô viu ao contemplar as cascas vazias das cigarras. As cigarras são seres subterrâneos e silenciosos — algumas chegam a ficar dezessete anos enterradas sob a forma de larva. De repente saem da terra, arrebentam as cascas duras que as continham (eram ataúdes) e se tornam seres alados, cantantes. Seres subterrâneos podem se tornar alados." (trecho do livro "Variações do Prazer", Rubem Alves, pg. 44 - Ed. Planeta)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

O rio, Manoel de Barros




O rio que fazia uma volta atrás de nossa cara era a

imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa.

Passou um homem depois e disse: Essa volta que o

rio faz por trás de sua casa se chama enseada.

Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que

fazia uma volta atrás de casa.

Era uma enseada.


Acho que o nome empobreceu a imagem.


Manoel de Barros


In "O Livro das Ignorãças".

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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Pedaços de amor, Adélia Prado

Mãe e filho, Gustav Klimt


Já mocinha, olhava minha mãe limpar um frango, estava calma e doce. Descansou a faca na mesa, pôs a mão na minha cabeça e me falou ensinando como boa mãe: olha aqui, Pia, um frango bem picado, contando com os pés e a cabeça, dá vinte e um pedaços. Achei que éramos especiais, pois sendo então uma família de sete pessoas, cabiam a cada um três pedaços exatos. Minha mãe me quer. 

Adélia Prado


In "Quero minha mãe", Editora Record, p. 77

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Oscilação, Helena Kolody



A cada oscilar do pêndulo
algo se apaga
ou para nós termina.

De segundo em segundo,
algo germina
ou para nós floresce... 



Helena Kolody (1912-2004)


Fonte: Helena Kolody - Série paranaense.Editora UFPR  -  1995.

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http://pt.wikipedia.org/wiki/Helena_Kolody


segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Jogo de bola, Cecília Meireles


Foto: David Alan Harvey



A bela bola
Rola:
A bela bola do Raul.

Bola amarela,
A da Arabela.

A do Raul,
Azul.

Rola a amarela
E pula a azul.

A bola é mole,
É mole e rola.

A bola pula.
É bela e pula.

É bela, rola e pula,
É mole, amarela, azul.

A de Raul é de Arabela,
E a de Arabela é de Raul.


Cecília Meireles


In: "OU ISTO OU AQUILO". Cecília Meireles.  Rio de JaneiroNova Fronteira, 1990, P. 13.

Inspirada em uma mensagem de Beto Palaio. Que delícia de resgate!


domingo, 6 de janeiro de 2013

O plantador de jardins, Rubem Alves



Contaram-me de um homem que, cansado com a cidade, resolveu mudar-se para a região montanhosa onde vivera quando menino. Tinha saudade das matas! Mas qual não foi a sua tristeza ao ver que os homens, com seus machados e serras haviam cortado as árvores. As encostas das montanhas estavam agora peladas e tristes, sem pássaros, sem borboletas, e os antigos riachinhos, sem as matas que os protegessem, haviam secado. Pois ele disse para si mesmo: "Essa será a minha missão, pelo resto da minha vida: sairei todos os dias com um saco de sementes das árvores que aqui havia e irei pelas encostas nuas plantando de novo. Se, de cada dez sementes que eu plantar uma vingar, estarei recompensado. E assim ele fez. Viveu mais dez anos. Morreu feliz! Da janela de sua casinha ele olhava para as montanhas – e ele parecia vê-las sorrir, quem sabe cantar de felicidade! As árvores que ele semeara estavam crescendo, os pássaros haviam voltado, os bichos estavam de volta. Existirá maneira mais linda de morrer? Contei essa estória para as crianças de Caldas, município de Minas, onde está Pocinhos do Rio Verde. Em tempos idos aquela região foi coberta de araucárias, os pinheiros do Paraná. Onde estão os milhões de pinheiros do Paraná que formavam florestas? A ganância e a falta de amor pela terra os transformaram em dinheiro e tristes pastos sem árvores. Contei e sugeri que elas, crianças, como parte de suas atividades escolares, deveriam plantar um pinhão num saquinho, regá-lo, e cuidar da mudinha, até que ela estivesse no tamanho certo. Chegaria então o dia em que todas elas, com suas professoras, seus pais e todo mundo que quisesse, iriam plantá-las nos campos nus. Sugiro que as pessoas religiosas, ao invés de prometerem sacrifícios e repetições de rezas a Deus – Deus não gosta de sacrifícios e quanto às rezas, sempre as mesmas, ele já as sabe de cor; não precisando de nossas repetições – bem que poderiam prometer plantar árvores... Acho que Deus, Jardineiro Supremo, haveria de aprovar. Acho que isso teria de ser atividade obrigatória em toda escola...

Rubem Alves

In "Conversas Sobre Política", Rubem Alves, Editora Verus

Rubem Alves (Boa Esperança, MG, 15 de setembro de 1933) é um psicanalista, educador, teólogo e escritor brasileiro, é autor de livros e artigos abordando temas religiosos, educacionais e existenciais, além de uma série de livros infantis.

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http://www.rubemalves.com.br/

Inspirada na página de: 
http://lilliverdi.blogspot.com.br/2013/01/o-plantador-de-jardinsrubem-alves.html

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