domingo, 6 de setembro de 2015

Quando o belo também é despedida, Rubem Alves

                          Photo by Vera Victoria Shiroky Schubert





No pôr-do-sol, este momento se esconde: é quando o efêmero ganha uma expressão de beleza. Por isso, não há por que fugir da tristeza. Há momentos em que ela é uma amiga verdadeiramente fiel.

Hoje quero falar da tristeza. Não me perguntem por que, pois eu mesmo não sei. A tristeza não pede licença, não se explica. Vai chegando de mansinho e espalhando seu perfume de jasmim pelas coisas, até que todas ficam encantadas pela beleza que nela mora. Ficam belas-tristes as nuvens do céu, tristes-belos os bem-te-vis nos galhos das árvores, belos-tristes os objetos silenciosos do meu escritório, e até mesmo o café da manhã fica triste-belo... A tristeza é sempre bela, pois ela nada mais é que o sentimento que se tem ante uma beleza que se perdeu...
Não sei o que a chamou. Teria sido a visão das florestas ardendo, com seus prenúncios de desertos quentes e fins do mundo, os pássaros fugindo para nunca mais voltar? Ou a visita a lugares antigos amados... Ah! Quem ama nunca deveria voltar... Lembro-me dos versos que decorei, o poeta visitando paisagens de outros tempos e cadenciando a sua tristeza com um refrão que se repete. "São estes os sítios? São estes... Mas eu o mesmo não sou. Marília, tu chamas? Espera que eu vou". Até a bem-amada fica à espera quando o corpo tenta recuperar os espaços perdidos. Pois é. Visitei lugares de minha infância lá em Minas, e vi que a casa velha onde morei já não existe e nem a jabuticabeira que reguei e as três paineiras a cuja sombra me assentei. Fiquei ali, diante dessas ausências. E percebo que tristeza é isto: estar diante de um espaço onde um dia houve o encontro. Saber que, cedo ou tarde, tudo o que está presente ficará ausente. A tristeza testemunha que o mistério da despedida está gravado em nossa própria carne. "Quem nos desviou assim", perguntava Rilke, "para que tivéssemos um ar de despedida em tudo o que fazemos?"
Não é esta ou aquela despedida. As pequenas despedidas apenas acordam em nós a consciência de que a vida é uma despedida. O que Cecília Meirelles dizia de sua avó morta podemos dizer da vida inteira: "Tudo em ti era uma ausência que se demorava, uma despedida pronta a cumprir-se...". Tristeza é isso, quando o belo e a despedida se coincidem. O que revela o nosso próprio segredo, dilacerado entre o belo, que nos tornaria eternamente felizes, e os nossos braços, curtos demais para segurá-lo.
"E quando nos sentimos mais seguros algo inesperado acontece: um pôr do sol... E estamos perdidos de novo..." (E. Browning). Mas que será aquilo que nos põe a perder? A beleza do crepúsculo? Não. Mas a percepção de que a beleza é crepúsculo. Goethe dizia do pôr do sol: "Tudo o que está próximo se distancia". Ao que Borges comenta: "Goethe se referia ao crepúsculo, mas também à vida. Aos poucos as coisas vão nos abandonando". O pôr do sol é triste porque nos conta que somos como ele: infinitamente belos em nossas cores, infinitamente nostálgicos em nosso adeus.
A tristeza é o espaço entre o belo e o efêmero, de onde nasce a poesia. Não é por acaso que os poetas repetem sempre o mesmo tema. "As nuvens à volta do sol que se põe", dizia Wordsworth, "ganham suas cores tristes de um olho que contempla a mortalidade dos homens...". E assim os poetas vão colocando suas palavras sobre o vazio. Não um vazio qualquer, vazio "pedaço arrancado de mim", mutilação no meu corpo. Exercício de saudade, tornar de novo presente um passado que já se foi. "Saudade é o revés de um parto, é arrumar o quarto para o filho que já morreu..."
E é só agora, Drummond, que compreendo o que você diz no seu poema Ausência, onde você afirma não lastimar o espaço vazio. Não deveria ser assim... Acontece que, depois da partida, só fica a ferida, ferida que não se deseja curar, pois ela traz de novo à memória o belo que uma vez foi. "Por muito tempo achei que ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não o lastimo Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim... Não é estranho isso, que na tristeza more a beleza, e que se encontre aí mesmo um pouco de alegria? É mais bonita a dor de quem arruma o quarto para o filho que já morreu, que o vazio/vazio de quem não tem nenhum quarto para arrumar".
Brinco com a minha tristeza como quem cuida de uma amiga fiel...   

Rubem Alves

Fonte: Revista Bons Fluidos n°119 - Fevereiro/2009

2 comentários:

  1. Minha tristeza segundo a terapeuta não é patologica.uma espécie melancólica de ser que sou.coisas ruins acontece com pessoas boas quer tu queira ou não. amar e não ser entendido é dor que não tem cura. vida jogada fora tu aprende a gostar de raiva. tristeza estado .coisa ruin que acontece comigo. adoro a tristeza. viva?

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    1. Olá Paulo! Obrigada pelo seu depoimento. Você conhece um texto do Kalil Gibran sobre a "Alegria e a Tristeza"? Leia mais: http://www.recantodasletras.com.br/prosapoetica/3327071

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