sábado, 4 de maio de 2013

Do ninho do guaxo, Rubem Alves

 imagem google



Sonho é uma coisa que não existe no mundo de fora, mas existe no mundo de dentro. Existe no mundo de dentro provisoriamente, porque os sonhos são como crianças: querem nascer.
Acho que os bichos sonham. Olho para um árvore. Não vejo nada de extraordinário. Passado um mês, passo novamente pela mesma árvore. Lá está um objeto fantástico, um ninho de guaxo. O ninho de guaxo tem forma de jaca. É tecido em volta de um ramo pendente com pequenos galhos entrelaçados. Pergunto-me: Como foi que o guaxo aprendeu a construir aquela obra de arte? Quem lhe ensinou? Respondo: O guaxo construiu o ninho do lado de fora porque ele já existia virtualmente do lado de dentro. Aquele ninho era seu sonho.
O guaxo sonhou seu ninho no tempo presente. Mas o presente de todo sonho tem, dentro de si, um futuro. Esse futuro se chama esperança. O guaxo trabalhava "na esperança". Ele não sabia disso com a cabeça. Mas seu corpo sabia. Há muitas coisas que o corpo sabe e a cabeça não.
Reescrevo o primeiro verso do Evangelho de João: "No princípio era o sonho". Antes que Deus criasse o paraíso, ele (ou ela, não sei bem...) sonhou com um paraíso.
Tudo começa nos sonhos. Sonho uma viagem à Patagônia. Aí minha cabeça começa a pensar: O que fazer para ir até a Patagônia? Sonho em construir uma casa. Aí minha cabeça pensa: Que tenho de fazer para construir uma casa? É o sonho que faz pensar. Sem sonho não há pensamento.
Pensamos porque desejamos realizar o sonho. Informado pela inteligência sobre o que fazer para realizar o sonho, o corpo trabalha. "Deus quer, o homem sonha, a obra nasce". Assim disse Fernando Pessoa.
Para isto existem as escolas - Para fazer sonhar e fazer pensar. Do sonho e do pensamento surge a obra. No caso do guaxo, o sonho a ser tornado realidade era o ninho. No caso do Criador, o sonho a ser tornado realidade era um jardim. O guaxo e o Criador procedem da mesma forma.
Imaginem agora que o guaxo foi à escola para aprender arte. E que lá tivesse aprendido a selecionar e a cortar os galhos, bem como a trançá-los, tendo sempre tirado as maiores notas nas avaliações. Só que ninguém lhe falou sobre o ninho. Ninguém lhe disse que aquelas artes serviam apenas para realizar um sonho. Pobre guaxo. Nunca sonhou um ninho. Passou o resto da vida cortando galhinhos e entrelaçando-os. Mas galhos solitários não fazem ninhos.
Nas várias disciplinas que se ensinam nas escolas, as crianças aprender a cortar galhos de vários tipos e, eventualmente, a tecê-los segundo padrões transversais. Mas eu gostaria de saber quando é que elas aprender a sonhar. Na verdade, nem é preciso aprender. Toda criança está cheia de sonhos. A realização dos sonhos requer uma coisa apenas: coragem. Onde estão os sonhos nas grades curriculares?
Queria sugerir a vocês, professores, que no seu mister de ensinar a arte dos galhinhos, se perguntassem: "Qual é o sonho?" Os primeiros sonhos são os individuais. Depois eles viram sonhos grandes. Como na música "A banda", do Chico Buarque. No início, cada um sonhava seu sonho pequeno. Mas, quando a banda passou, as pessoas se esqueceram de seus sonhos pequenos e começaram a sonhar juntas um único sonho grande.
É assim, pelo poder do grande sonho, que os gravetinhos esparramados podem se jutar para construir um país. Afinal de contas, o país é o nosso ninho de guaxo.
Rubem Alves
In: A Pedagogia dos Caracóis, Editora Verus.

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