Klimt, Gustav - O Beijo
Os
místicos e os apaixonados concordam em que o amor não tem razões.
Angelus Silésius, místico medieval, disse que ele é como a rosa:
"A rosa não tem "porquês". Ela floresce porque
floresce."
Drummond
repetiu a mesma coisa no seu poema As Sem-Razões do Amor. É possível
que ele tenha se inspirado nestes versos mesmo sem nunca os ter lido, pois
as coisas do amor circulam com o vento.
"Eu
te amo porque te amo..." - sem razões... "Não precisas ser
amante, e nem sempre sabes sê-lo." Meu amor independe do que me
fazes. Não cresce do que me dás. Se fosse assim ele flutuaria ao sabor
dos teus gestos. Teria razões e explicações. Se um dia teus gestos de
amante me faltassem, ele morreria como a flor arrancada da terra.
"Amor
é estado de graça e com amor não se paga."
Nada
mais falso do que o ditado popular que afirma que "amor com amor se
paga". O amor não é regido pela lógica das trocas comerciais. Nada te devo. Nada
me deves. Como a rosa que floresce porque floresce, eu te amo porque te
amo. "Amor é dado de graça, é semeado no vento, na cachoeira, no
eclipse. Amor foge a dicionários e a regulamentos vários... Amor não se
troca... Porque amor é amor a nada, feliz e forte em si mesmo..."
Drummond
tinha de estar apaixonado ao escrever estes versos. Só os apaixonados
acreditam que o amor seja assim, tão sem razões. Mas eu, talvez por não
estar apaixonado (o que é uma pena...), suspeito que o coração tenha
regulamentos e dicionários, e Pascal me apoiaria, pois foi ele quem disse
que "o coração tem razões que a própria razão desconhece".
Não é que faltem razões ao coração, mas que suas razões estão
escritas numa língua que desconhecemos.
Destas
razões escritas em língua estranha o próprio Drummond tinha
conhecimento, e se perguntava: "Como decifrar pictogramas de há 10
mil anos se nem sei decifrar minha escrita interior? A verdade essencial
é o desconhecido que me habita e a cada amanhecer me dá um soco." O
amor será isto: um soco que o desconhecido me dá?
Ao
apaixonado a decifração desta língua está proibida, pois se ele a
entender, o amor se irá. Como na história de Barba Azul: se a porta
proibida for aberta, a felicidade estará perdida. Foi assim que o paraíso
se perdeu: quando o amor - frágil bolha de sabão - não contente com sua
felicidade inconsciente, se deixou morder pelo desejo de saber. O amor não
sabia que sua felicidade só pode existir na ignorância das suas razões.
Kierkegaard comentava o absurdo de se pedir aos amantes explicações para
o seu amor. A esta pergunta eles só possuem uma resposta: o silêncio.
Mas que se lhes peça simplesmente falar sobre o seu amor - sem explicar.
E eles falarão por dias, sem parar...
Mas
- eu já disse - não estou apaixonado. Olho para o amor com olhos de
suspeita, curiosos. Quero decifrar sua língua desconhecida. Procuro, ao
contrário do Drummond, as cem razões do amor...
Vou
a Santo Agostinho, em busca de sua sabedoria. Releio as Confissões, texto
de um velho que meditava sobre o amor sem estar apaixonado. Possivelmente
aí se encontre a análise mais penetrante das razões do amor jamais
escrita. E me defronto com a pergunta que nenhum apaixonado poderia jamais
fazer: "Que é que eu amo quando amo o meu Deus?" Imaginem que
um apaixonado fizesse essa pergunta à sua amada: "Que é que eu amo
quando te amo?" Seria, talvez, o fim de uma estória de amor. Pois
esta pergunta revela um segredo que nenhum amante pode suportar: que ao
amar a amada o amante está amando uma outra coisa que não é ela. Nas
palavras de Hermann Hesse, "o que amamos é sempre um símbolo".
Daí, conclui ele, a impossibilidade de fixar o seu amor em qualquer coisa
sobre a terra.
Variações
sobre a impossível pergunta:
"Te
amo, sim, mas não é bem a ti que eu amo. Amo uma outra coisa misteriosa,
que não conheço, mas que me parece ver aflorar no seu rosto. Eu te amo
porque no teu corpo um outro objeto se revela. Teu corpo é lagoa
encantada onde reflexos nadam como peixes fugidios... Como Narciso, fico
diante dele... No fundo de tua luz marinha nadam meus olhos, à procura...
Por isto te amo, pelos peixes encantados..."(Cecília Meireles)
Mas
eles são escorregadios, os peixes. Fogem. Escapam.
Escondem-se.
Zombam de mim. Deslizam entre meus dedos.
Eu
te abraço para abraçar o que me foge. Ao te possuir alegro-me na ilusão
de os possuir. Tu és o lugar onde me encontro com esta outra coisa que,
por pura graça, sem razões, desceu sobre ti, como o Vento desceu sobre a
Virgem Bendita. Mas, por ser graça, sem razões, da mesma forma como
desceu poderá de novo partir. Se isto acontecer deixarei de te amar. E
minha busca recomeçará de novo..."
Esta
é a dor que nenhum apaixonado suporta. A paixão se recusa a saber que o
rosto da pessoa amada (presente) apenas sugere o obscuro objeto do desejo
(ausente). A pessoa amada é metáfora de uma outra coisa. "O amor
começa por uma metáfora", diz Milan Kundera. "Ou melhor: o
amor começa no momento em que uma mulher se inscreve com uma palavra em
nossa memória poética."
Temos
agora a chave para compreender as razões do amor: o amor nasce, vive e
morre pelo poder - delicado - da imagem poética que o amante pensou ver
no rosto da amada...
Rubem Alves, Contista, cronista, ensaísta, poeta, pedagogo, filósofo, teólogo e psicanalista brasileiro. Rubem Azevedo Alves nasceu em 1933,
Boa Esperança, Minas Gerais.
Fonte:
Crônica publicada no Correio Popular; Campinas; em 14/05/92
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