Um amigo
me disse que o poeta Mallarmé tinha o sonho de
escrever um poema de uma palavra só. Ele buscava
uma única palavra que contivesse o mundo. T.S.
Eliot no seu poema O Rochedo tem um verso que diz que
temos "conhecimento de palavras e ignorância
da Palavra". A poesia é uma busca da Palavra
essencial, a mais profunda, aquela da qual nasce o universo.
Eu acho que Deus, ao criar o universo, pensava numa
única palavra: Jardim! Jardim é a imagem
de beleza, harmonia, amor, felicidade. Se me fosse dado
dizer uma última palavra, uma única palavra,
Jardim seria a palavra que eu diria."
Depois de uma longa espera consegui, finalmente,
plantar o meu jardim. Tive de esperar muito tempo
porque jardins precisam de terra para existir. Mas
a terra eu não tinha. De meu, eu só
tinha o sonho. Sei que é nos sonhos que os
jardins existem, antes de existirem do lado de fora.
Um jardim é um sonho que virou realidade, revelação
de nossa verdade interior escondida, a alma nua se
oferecendo ao deleite dos outros, sem vergonha alguma...
Mas os sonhos, sendo coisas belas, são coisas
fracas. Sozinhos, eles nada podem fazer: pássaros
sem asas... São como as canções,
que nada são até que alguém as
cante; como as sementes, dentro dos pacotinhos, à
espera de alguém que as liberte e as plante
na terra. Os sonhos viviam dentro de mim. Eram posse
minha. Mas a terra não me pertencia.
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O
terreno ficava ao lado da minha casa, apertada, sem
espaço, entre muros. Era baldio, cheio de lixo,
mato, espinhos, garrafas quebradas, latas enferrujadas,
lugar onde moravam assustadoras ratazanas que, vez por
outra, nos visitavam. Quando o sonho apertava eu encostava
a escada no muro e ficava espiando.
Eu não acreditava que meu sonho pudesse ser
realizado. E até andei procurando uma outra
casa para onde me mudar, pois constava que outros
tinham planos diferentes para aquele terreno onde
viviam os meus sonhos. E se o sonho dos outros se
realizasse, eu ficaria como pássaro engaiolado,
espremido entre dois muros, condenado à infelicidade.
Mas um dia o inesperado aconteceu. O terreno ficou
meu. O meu sonho fez amor com a terra e o jardim nasceu.
Não chamei paisagista. Paisagistas são
especialistas em jardins bonitos. Mas não era
isto que eu queria. Queria um jardim que falasse.
Pois você não sabe que os jardins falam?
Quem diz isto é o Guimarães Rosa: "São
muitos e milhões de jardins, e todos os jardins
se falam. Os pássaros dos ventos do céu
- constantes trazem recados. Você ainda não
sabe. Sempre à beira do mais belo. Este é
o Jardim da Evanira. Pode haver, no mesmo agora, outro,
um grande jardim com meninas. Onde uma Meninazinha,
banguelinha, brinca de se fazer Fada... Um dia você
terá saudades... Vocês, então,
saberão..." É preciso ter saudades
para saber. Somente quem tem saudades entende os recados
dos jardins. Não chamei um paisagista porque,
por competente que fosse, ele não podia ouvir
os recados que eu ouvia. As saudades dele não
eram as saudades minhas. Até que ele poderia
fazer um jardim mais bonito que o meu. Paisagistas
são especialistas em estética: tomam
as cores e as formas e constróem cenários
com as plantas no espaço exterior. A natureza
revela então a sua exuberância num desperdício
que transborda em variações que não
se esgotam nunca, em perfumes que penetram o corpo
por canais invisíveis, em ruídos de
fontes ou folhas... O jardim é um agrado no
corpo. Nele a natureza se revela amante... E como
é bom!
Mas não era bem isto que eu queria. Queria
o jardim dos meus sonhos, aquele que existia dentro
de mim como saudade. O que eu buscava não era
a estética dos espaços de fora; era
a poética dos espaços de dentro. Eu
queria fazer ressuscitar o encanto de jardins passados,
de felicidades perdidas, de alegrias já idas.
Em busca do tempo perdido... Uma pessoa, comentando
este meu jeito de ser, escreveu: "Coitado do
Rubem! Ficou melancólico. Dele não mais
se pode esperar coisa alguma..." Não entendeu.
Pois melancolia é justamente o oposto: ficar
chorando as alegrias perdidas, num luto permanente,
sem a esperança de que elas possam ser de novo
criadas. Aceitar como palavra final o veredicto da
realidade, do terreno baldio, do deserto. Saudade
é a dor que se sente quando se percebe a distância
que existe entre o sonho e a realidade. Mais do que
isto: é compreender que a felicidade só
voltará quando a realidade for transformada
pelo sonho, quando o sonho se transformar em realidade.
Entendem agora por que um paisagista seria inútil?
Para fazer o meu jardim ele teria que ser capaz de
sonhar os meus sonhos...
Sonho com um jardim. Todos sonham com um jardim.
Em cada corpo, um Paraíso que espera... Nada
me horroriza mais que os filmes de ficção
científica onde a vida acontece em meio aos
metais, à eletrônica, nas naves espaciais
que navegam pelos espaços siderais vazios...
E fico a me perguntar sobre a perturbação
que levou aqueles homens a abandonar as florestas,
as fontes, os campos, as praias, as montanhas... Com
certeza um demônio qualquer fez com que se esquecessem
dos sonhos fundamentais da humanidade. Com certeza
seu mundo interior ficou também metálico,
eletrônico, sideral e vazio... E com isto, a
esperança do Paraíso se perdeu. Pois,
como o disse o místico medieval Angelus Silésius:
Se, no teu centro
um Paraíso não puderes encontrar,
não existe chance alguma de, algum dia,
nele entrar.
Este pequeno poema de Cecília Meireles me
encanta, é o resumo de uma cosmologia, uma
teologia condensada, a revelação do
nosso lugar e do nosso destino:
"No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, urna violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de urna borboleta."
Metáfora: somos a borboleta. Nosso mundo,
destino, um jardim. Resumo de uma utopia. Programa
para uma política. Pois política é
isto: a arte da jardinagem aplicada ao mundo inteiro.
Todo político deveria ser jardineiro. Ou, quem
sabe, o contrário: todo jardineiro deveria
ser político. Pois existe apenas um programa
político digno de consideração.
E ele pode ser resumido nas palavras de Bachelard:
"O universo tem, para além de todas as
misérias, um destino de felicidade. O homem
deve reencontrar o Paraíso." (O retorno
eterno, p 65).
Comecei
a gostar dos livros mesmo antes de saber ler. Descobri que
os livros eram um tapete mágico que me levavam instantaneamente
a viajar pelo mundo... Lendo, eu deixava de ser o menino pobre
que era e me tornava um outro. Eu me vejo assentado no chão,
num dos quartos do sobradão do meu avô. Via figuras.
Era um livro, folhas de tecido vermelho. Nas suas páginas
alguém colara gravuras, recortadas de revistas. Não
sei quem o fez. Só sei que quem o fez amava as crianças.
Eu passava horas vendo as figuras e não me cansava
de vê-las de novo. Um outro livro que me encantava era
o “Jeca Tatu“, do Monteiro Lobato. Começava
assim: “Jeca Tatu era um pobre caboclo...“ De
tanto ouvir a estória lida para mim, acabei por sabê-lo
de cor. “De cor“: no coração. Aquilo
que o coração ama não é jamais
esquecido. E eu o “lia“ para minha tia Mema, que
estava doente, presa numa cadeira de balanço. Ela ria
o seu sorriso suave, ouvindo minha leitura. Um outro livro
que eu amava pertencera à minha mãe criança.
Era um livro muito velho. Façam as contas: minha mãe
nasceu em 1896... Na capa havia um menino e uma menina que
brincavam com o globo terrestre. Era um livro que me fazia
viajar por países e povos distantes e estranhos. Gravuras
apenas. Esquimós, em suas roupas de couro, dando tiros
para o ar, saudando o fim do seu longo inverno. Embaixo, a
explicação: “Onde os esquimós vivem
a noite é muito longa; dura seis meses.“ Um crocodilo,
bocarra enorme aberta, com seus dente pontiagudos, e um negro
se arrastando em sua direção, tendo na mão
direita um pau com duas pontas afiadas. O que ele queria era
introduzir o pau na boca do crocodilo, sem que ele se desse
conta. Quando o crocodilo fechasse a boca estaria fisgado
e haveria festa e comedoria! Na gravura dedicada aos Estados
Unidos havia um edifício, com a explicação
assombrosa: “Nos Estados Unidos há casas com
10 andares...“ Mas a gravura que mais mexia comigo representava
um menino e uma menina brincando de fazer um jardim. Na verdade,
era mais que um jardim. Era um mini-cenário. Haviam
feito montanhas de terra e pedra. Entre as montanhas, um lago
cuja água, transbordando, se transformava num riachinho.
E, às suas margens, o menino e a menina haviam plantado
uma floresta de pequenas plantas e musgos. A menina enchia
o lago com um regador. Eu não me contentava em ver
o jardim: largava o livro e ia para a horta, com a idéia
de plantar um jardim parecido. E assim passava toda uma tarde,
fazendo o meu jardim e usando galhos de hortelã como
as árvores da floresta... Onde foi parar o livro da
minha mãe? Não sei. Também não
importa. Ele continua aberto dentro de mim.
Bachelard
se refere aos “sonhos fundamentais“ da alma. “Sonhos
fundamentais“: o que é isso? É simples.
Há sonhos que nascem dos eventos fortuitos, peculiares
a cada pessoa. Esses sonhos são só delas: sonhos
acidentais, individuais. Mas há certos sonhos que moram
na alma de todas as pessoas. Jung deu a esses sonhos universais
o nome de “arquétipos“. Esses são
os sonhos fundamentais. O fato de termos, todos, os mesmos
sonhos fundamentais, cria a possibilidade de “comunhão“.
Ao compartilhar os mesmos sonhos descobrimo-nos irmãos.
Um desses sonhos fundamentais é um “jardim“.
Faz de
contas que a sua alma é um útero. Ela está
grávida. Dentro dela há um feto que quer nascer.
Esse feto que quer nascer é o seu sonho. Quem engravidou
a sua alma eu não sei. Acho que foi um ser de um outro
mundo... Imagino que o tal de “Big-Bang“ a que
se referem os astrônomos foi Deus ejaculando seu grande
sonho e soltando pelo vazio milhões, bilhões,
trilhões de sementes. Em cada uma delas estava o sonho
fundamental de Deus: um jardim, um Paraíso... Assim,
sua alma está grávida com o sonho fundamental
de Deus...
Mas toda
semente quer brotar, todo feto quer nascer, todo sonho quer
se realizar. Sementes que não nascem, fetos que são
abortados, sonhos que não são realizados, se
transformam em demônios dentro da alma. E ficam a nos
atormentar. Aquelas tristezas, aquelas depressões,
aquelas irritações - vez por outra elas tomam
conta de você – aposto que são o sonho
de jardim que está dentro e não consegue nascer.
Deus não tem muita paciência com pessoas que
não gostam de jardins...
Menino,
os jardins eram o lugar de minha maior felicidade. Dentro
da casa os adultos estavam sempre vigiando: “Não
mexa aí, não faça isso, não faça
aquilo...“ O Paraíso foi perdido quando Adão
e Eva começaram a se vigiar. O inferno começa
no olhar do outro que pede que eu preste contas. E como as
crianças são seres paradisíacos, eu fugia
para o jardim. Lá eu estava longe dos adultos. Eu podia
ser eu mesmo. O jardim era o espaço da minha liberdade.
O jardim era o espaço da minha liberdade. As árvores
eram minhas melhores amigas. A pitangueira, com seus frutinhos
sem vergonha. Meu primeiro furto foi o furto de uma pitanga:
“furto“ – “fruto“ – é
só trocar uma letra.... Até mesmo inventei uma
maquineta de roubar pitangas... Havia uma jabuticabeira que
eu considerava minha, em especial. Fiz um rego à sua
volta para que ela bebesse água todo dia. Jabuticabeiras
regadas sempre florescem e frutificam várias vezes
por ano. Na ocasião da florada era uma festa. O perfume
das suas flores brancas é inesquecível. E vinham
milhares de abelhas. No pé de nêspera eu fiz
um balanço. Já disse que balançar é
o melhor remédio para depressão. Quem balança
vira criança de novo. Razão por que eu acho
um crime que, nas praças públicas, só
haja balancinhos para crianças pequenas. Há
de haver balanços grandes para os grandes! Já
imaginaram o pai e a mãe, o avô e a avó,
balançando? Riram? Absurdo? Entendo. Vocês estão
velhos. Têm medo do ridículo. Seu sonho fundamental
está enterrado debaixo do cimento. Eu já sou
avô e me rejuvenesço balançando até
tocar a ponta do pé na folha do caquizeiro onde meu
balanço está amarrado!
Crescido,
os jardins começaram a ter para mim um sentido poético
e espiritual. Percebi que a Bíblia Sagrada é
um livro construído em torno de um jardim. Deus se
cansou da imensidão dos céus e sonhou... Sonhou
com um ... jardim. Se ele – ou ela – estivesse
feliz lá no céu, ele ou ela não teria
se dado ao trabalho de plantar um jardim. A gente só
cria quando aquilo que se tem não corresponde ao sonho.
Todo ato de criação tem por objetivo realizar
um sonho. E quando o sonho se realiza, vem a experiência
de alegria. Nos textos de Gênesis está dito que,
ao término do seu trabalho, Deus viu que tudo “era
muito bom.“ O mais alto sonho de Deus é um jardim.
Essa é a razão porque no Paraíso não
havia templos e altares. Para que? “Deus andava pelo
meio do jardim...“ Gostaria de saber quem foi a pessoa
que teve a idéia de que Deus mora dentro de quatro
paredes! Um coisa eu garanto: não foi idéia
dele. Seria bonito se as religiões, ao invés
de gastar dinheiro construindo templos e catedrais, usassem
esse mesmo dinheiro para fazer jardins onde, evidentemente,
crianças, adultos e velhos poderiam balançar
e tocar os pés nas folhas das árvores. Ninguém
jamais viu a Deus. Um jardim é o seu rosto sorridente...
E se vocês lerem as visões dos profetas, verão
que o Messias é jardineiro: vai plantar de novo o Paraíso:
nascerão regatos nos desertos, nos lugares ermos crescerão
a murta (perfumada!), as oliveiras, as videiras, as figueiras,
os pés de romã, as palmeiras... E lá,
à sombra das árvores, acontecerá o amor...
Leia o livro dos “Cânticos dos Cânticos“!
Pensei,
então, que o ato de plantar uma árvore é
um anúncio de esperança. Especialmente se for
uma árvore de crescimento lento. E isso porque, sendo
lento o seu crescimento, eu a plantarei sabendo que nem vou
comer dos seus frutos e nem vou me assentar à sua sombra....
Eu a plantarei pensando naqueles que comerão dos seus
frutos e se assentarão à sua sombra. E isso
bastará para me trazer felicidade!
APERITIVOS
Faz tempo,
- eu já estava aposentado - encontrei-me com o professor
Hermógenes, diretor do horto da UNICAMP. Ele me sorriu
e disse:“Aquele seu sonho vai ser realizado...“
O meu sonho a que ele se referia era uma antiga proposta minha
à direção da universidade: que houvesse,
no campus, um espaço onde se plantassem árvores
para os professores, funcionários e alunos mortos.
Cada cadáver seria uma semente. Seria o “Jardim
dos Encantados“. Uma semana depois desse encontro o
Hermógenes morreu, em meio às árvores
que ele tanto amava. E o sonho foi esquecido...
A Prefeitura
poderia criar estímulos para que os terrenos vazios,
baldios, se transformassem em jardins abertos aos moradores
dos bairros. Os próprios moradores, vizinhos, seriam
os jardineiros. É tão simples. E estímulos
para que todos fizessem um jardinzinho – ainda que seja
um jardinzinho de janela...
Kurosawa
fez um filme maravilhoso sobre isso: um burocrata que, sabendo
que ia morrer, tomou a decisão de gastar seus últimos
meses lutando contra a burocracia, a fim de permitir que os
moradores de um bairro pudessem plantar um jardim. Se não
me equivoco o nome do filme era “Viver“. Filme
velho, preto e branco. Acho que não se encontra nas
locadoras.
Recebi
um presente delicioso do sr. Moacyr G. Palhares: um exemplar
do “Jeca-Tatu“, de Monteiro Lobato, 34ª edição,
80 milhões de exemplares distribuídos. Obrigado,
Moacyr! (Correio Popular, Caderno C, 01/07/2001.)
Fonte: http://www.rubemalves.com.br/jardins.htm
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