imagem google
A fotografia é simples, apenas um detalhe: duas mãos dadas, uma mão segurando a outra.
Uma delas é grande, a outra, pequena, rechonchuda.
Isso é tudo. Mas a imaginação não se contenta com o fragmento – completa o quadro: é um pai que passeia com seu filhinho.
O pai, adulto, segura com firmeza e ternura a mãozinha da criança: a mãozinha do filho é muito pequena, termina no meio da palma da mão do pai.
O pai vai conduzindo o filho, indicando o caminho, vai apontando para as coisas, mostrando como elas são interessantes, bonitas, engraçadas. O menininho vai sendo apresentado ao mundo.
É assim que as coisas acontecem: os grandes ensinam, os pequenos aprendem.
As crianças nada sabem sobre o mundo.
Também, pudera! Nunca estiveram aqui.
Tudo é novidade.
Alberto Caeiro tem um poema sobre o olhar (dele), que ele diz ser igual ao de uma criança:
O meu olhar é nítido como um girassol.(...)
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do mundo.
O olhar das crianças é pasmado! Vêem o que nunca tinham visto!
Não sabem o nome das coisas.
O pai vai dando os nomes. Aprendendo os nomes, as coisas estranhas vão ficando conhecidas e amigas. Transformam-se num rebanho manso de ovelhas que atendem quando são chamadas.
Quem sabe as coisas são os adultos.
Conhecem o mundo.
Não nasceram sabendo.
Tiveram de aprender. Houve um tempo quando a mãozinha rechonchuda era a deles.
Um outro, de mão grande, os conduziu.
O mais difícil foi aprender quando não havia ninguém que ensinasse.
Tiveram de tatear pelo desconhecido. Erraram muitas vezes.
Foi assim que as rotas e os caminhos foram descobertos.
Já imaginaram os milhares de anos que tiveram de se passar até que os homens aprendessem que certas ervas têm poderes de cura?
Quantas pessoas tiveram de morrer de frio até que os esquimós descobrissem que era possível fabricar casas quentes com o gelo!
E as comidas que comemos, os pratos que nos dão prazer!
Por detrás deles há milênios de experimentos, acidentes felizes, fracassos!
Vejam o fósforo, essa coisa insignificante e mágica: um esfregão e eis o milagre: o fogo na ponta de um pauzinho.
Eu gostaria, um dia, de dar um curso sobre a história de pau de fósforo.
Na sua história há uma enormidade de experimentos e pensamentos.
Ensinar é um ato de amor.
Se as gerações mais velhas não transmitissem o seu conhecimento às gerações mais novas, nós ainda estaríamos na condição dos homens pré-históricos.
Ensinar é o processo pelo qual as gerações mais velhas transmitem às gerações mais novas, como herança, a caixa onde guardam seus mapas e ferramentas.
Assim as crianças não precisam começar da estaca zero.
Ensinam-se os saberes para poupar àqueles que não sabem o tempo e o cansaço do pensamento: saber para não pensar. Não preciso pensar para riscar um pau de fósforo.
Os grandes sabem. As crianças não sabem.
Os grandes ensinam. As crianças aprendem.
Está resumido na fotografia: o de mão grande conduz o de mãozinha pequena.
Esse é o sentido etimológico da palavra “pedagogo”: aquele que conduz as crianças.
Educar é transmitir conhecimentos.
O seu objetivo é fazer com que as crianças deixem de ser crianças.
Ser criança é ignorar, nada saber, estar perdido. Toda criança está perdida no mundo.
A educação existe para que chegue um momento em que ela não esteja mais perdida: a mãozinha de criança tem de se transformar em mãozona de um adulto que não precisa ser conduzido: ele se conduz, ele sabe os caminhos, ele sabe como fazer.
A educação é um progressivo despedir-se da infância.
A pedagogia do meu querido amigo Paulo Freire amaldiçoava aquilo que se denomina ensino “bancário” – os adultos vão “depositando” saberes na cabeça das crianças da mesma forma como depositamos dinheiro num banco.
Mas me parece que é assim mesmo que acontece com os saberes fundamentais: os adultos simplesmente mostram como as coisas são, como as coisas são feitas. Sem razões e explicações.
É assim que os adultos ensinam as crianças a andar, a falar, a dar laço no cordão do sapato, a tomar banho, a descascar laranja, a nadar, a assobiar, a andar de bicicleta, a riscar o fósforo.
Tentar criar “consciência crítica” para essas coisas é tolice.
O adulto mostra como se faz. A criança faz do jeito como o adulto faz.
Imita. Repete.
Mesmo as pedagogias mais generosas, mais cheias de amor e ternura pelas crianças, trabalham sobre esses pressupostos.
Se as crianças precisam ser conduzidas é porque elas não sabem o caminho.
Quando tiverem aprendido os caminhos andarão por conta própria.
Serão adultos.
Todo mundo sabe que as coisas são assim: as crianças nada sabem, quem sabe são os adultos.
Segue-se, então, logicamente, que as crianças são os alunos e os adultos são os professores.
Diferença entre quem sabe e quem não sabe.
Dizer o contrário é puro non-sense.
Porque o contrário seria dizer que as crianças devem ensinar os adultos.
Mas, nesse caso, as crianças teriam um saber que os adultos não têm.
Se já tiveram, perderam... Mas quem levaria a sério tal hipótese?
Pois o Natal é essa absurda inversão pedagógica: os grandes aprendendo dos pequenos.
Um profeta do Antigo Testamento, certamente sem entender o que escrevia – os profetas nunca sabem o que estão dizendo -, resumiu essa pedagogia invertida numa frase curta e maravilhosa: "... e uma criança pequena os guiará" (Isaías 11.6).
Se colocarmos esse mote ao pé da fotografia tudo fica ao contrário: é a criança que vai mostrando o caminho.
O adulto vai sendo conduzido: olhos arregalados, bem abertos, vendo coisas que nunca viu. São as crianças que vêem as coisas – porque elas as vêem sempre pela primeira vez com espanto, com assombro de que elas sejam do jeito como são.
Os adultos, de tanto vê-las, já não as vêem mais.
As coisas – as mais maravilhosas – ficam banais.
Ser adulto é ser cego.
Os filósofos, cientistas e educadores acreditam que as coisas vão ficando cada vez mais claras à medida que o conhecimento cresce.
O conhecimento é a luz que nos faz ver. Os sábios sabem o oposto: existe uma progressiva cegueira das coisas à medida que o seu conhecimento cresce.
“Vale mais a pena ver uma coisa sempre pela primeira vez que conhecê-la.
Porque conhecer é como nunca ter visto pela primeira vez...” As crianças nos fazem ver “a eterna novidade do mundo...” Fernando Pessoa
Janucz Korczak, um dos grandes educadores do século XX – foi voluntariamente com as crianças da sua escola para a câmara de gás de um campo de concentração nazista -, deu, a um dos seus livros, o título: Quando eu voltar a ser criança.
Ele sabia das coisas.
Era sábio.
Lição da psicanálise: os cientistas e os filósofos vêem o lado direito.
Os sábios vêem os avesso.
O avesso é este: os adultos são os alunos; as crianças são os mestres.
Por isso os magos, sábios, deram por encerrada a sua jornada ao encontrarem um menininho numa estrebaria...
No Natal todos os adultos rezam a reza mais sábia de todas, escrita pela Adélia Prado:
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande...”.
Rubens Alves
Fonte: O amor que acende a lua, Rubem Alves - Editora Papirus, 3ª edição - 2003.
Nenhum comentário:
Postar um comentário