Meus tios buscavam as horas a cavalo, como contei uma vez aqui. Na casa da zona rural era missão dos mais velhos dar corda no relógio de parede. Mas acontecia de alguém esquecer sua tarefa e, no espaço de uma batida, o som da passagem da vida cessava. De fato não fazia falta porque a natureza marcava o tempo e eles dela eram parte. Mas a ausência do tique-taque com os dias ia se tornando uma presença de mau augúrio, porque vida vivida é vida marcada. Antes que o mundo se desarranjasse, meu avô despachava um filho para a cidade. Dava a ele seu relógio de bolso, sempre parado até essas emergências temporais. Um dos meus tios encilhava o cavalo, só usado em ocasiões de importância, e lá se ia galopando por 13 quilômetros no encalço das horas. Sabia onde encontrá-las. Na praça central de Ijuí, de um lado postava-se a igreja católica, de outro a evangélica, a dividir almas e poderes. Mas só a evangélica ostentava na torre um relógio que dominava a cidade. Meu tio dava as costas para a sua fé, com a certeza de que o padre o perdoaria, e com as mãos desajeitadas pela enxada guardava as horas no relógio de bolso. Galopava de volta com o tempo enfiado nas calças. E o coração da casa voltava a bater lembrando que a vida acaba.
Esse relógio seguiu tiquetaqueando enquanto as mortes se sucediam, assim como as estações, e a casa lentamente foi virando terra. Chegou a minha vez de buscar o tempo para colocá-lo na minha parede, em cima da escrivaninha-xerife. Não mais a cavalo, agora são mil quilômetros, mas de avião, um carro, talvez um ônibus. Tentarei não me esquecer de dar corda.
Compartilho essa memória pessoal para dizer que o tempo que passei aqui com vocês me ajudou a inventar uma vida com sentido. E agradeço – profundamente – pelo tempo que cada um me deu ao ler esta coluna, porque sei o quanto esse gesto é largo. Escolhi me despedir das segundas-feiras. E buscar novos dias.
Eliane Brum
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