O pensador, Auguste Rodin
Não me lembro em que momento percebi que viver deveria ser uma permanente reinvenção de nós mesmos — para não morrermos soterrados na poeira da banalidade embora pareça que ainda estamos vivos.
Mas
compreendi, num lampejo: então é isso, então é assim. Apesar dos medos,
convém não ser demasiado fútil, nem demasiado acomodada. Algumas vezes é
preciso pegar o touro pelos cornos, mergulhar para depois ver o que
acontece: porque a vida não tem de ser sorvida como uma taça que se esvazia, mas como o jarro que se renova a cada gole bebido.
Para se reinventar é preciso pensar: isso aprendi muito cedo.
Apalpar,
no nevoeiro de quem somos, algo que pareça uma essência: isso, mais ou
menos, sou eu. Isso é o que eu queria ser, acredito ser, quero tornar-me
ou já fui. Muita inquietação por baixo das águas do quotidiano. Mais cômodo seria ficar com o travesseiro sobre a cabeça e adotar o lema reconfortante: «Parar p’ra pensar, nem pensar!»
O
problema é que, quando menos se espera, ele chega, o sorrateiro
pensamento que nos faz parar. Pode ser no meio do centro comercial, no
trânsito, em frente da televisão ou do computador. Simplesmente ao
escovar os dentes. Ou na hora da droga, do sexo sem afeto, do desafeto,
do rancor, da lamúria, da hesitação e da resignação.
Sem termos programado, paramos para pensar.
Pode ser um susto: como espreitar de um berçário confortável para um corredor com mil possibilidades. Cada porta, uma escolha.
Muitas vão abrir-se para um nada ou para algum absurdo. Outras, para um
jardim de promessas. Alguma, para a noite além da cerca. Hora de tirar
os disfarces, aposentar as máscaras e reavaliar: reavaliar-se.
Pensar pede audácia, pois refletir é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto.
Somos demasiado frívolos: buscamos o atordoamento das mil distrações, correndo de um lado para o outro, achando que somos grandes cumpridores de tarefas. Quando o primeiro dever seria de vez em quando parar e analisar: quem somos, o que fazemos com a nossa vida, o tempo, os amores.
E com as obrigações também, é claro, pois não temos sempre cinco anos
de idade, quando a prioridade absoluta é dormir abraçado ao urso de
pelúcia e prosseguir, no sono, o sonho que afinal nessa idade ainda é a
vida.
Mas pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho: é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e, quem sabe, finalmente respirar.
Compreender:
somos inquilinos de algo bem maior do que o nosso pequeno segredo
individual. É o poderoso ciclo da existência. Nele todos os desastres e
toda a beleza têm significado como fases de um processo.
Se
nos escondermos num canto escuro, abafando os nossos questionamentos,
não escutaremos o rumor do vento nas árvores do mundo. Nem
compreenderemos que o prato das inevitáveis perdas pode pesar menos do
que o dos possíveis ganhos.
Os ganhos ou os danos dependem da perspectiva e das possibilidades de quem vai tecendo a sua história.
O mundo em si não tem sentido sem o nosso olhar que lhe atribui
identidade, sem o nosso pensamento que lhe confere alguma ordem.
Viver, como talvez morrer, é recriar-se: a vida não está aí apenas para ser suportada nem vivida, mas elaborada. Eventualmente reprogramada. Conscientemente executada. Muitas vezes, ousada.
Parece fácil: «Escrever a respeito das coisas é fácil»,
já me disseram. Eu sei. Mas não é preciso realizar nada de espetacular,
nem desejar nada de excepcional. Não é preciso nem mesmo ser brilhante,
importante, admirado.
Para
viver de verdade, pensando e repensando a existência, para que ela
valha a pena, é preciso ser amado; e amar; e amar-se. Ter esperança;
qualquer segurança.
Questionar o que nos é imposto, sem rebeldias insensatas mas sem demasiada sensatez. Saborear o bom, mas aqui e ali enfrentar o mau. Suportar sem se submeter, aceitar sem se humilhar, entregar-se sem renunciar a si mesmo e à possível dignidade.
Sonhar, porque, se desistimos disso, apaga-se a última claridade e nada mais valerá a pena.
Escapar, na liberdade do pensamento, desse espírito de manada que
trabalha obstinadamente para nos enquadrar, seja lá no que for.
E que o mínimo que façamos seja, a cada momento, o melhor que afinal se conseguiu fazer.
Lya Luft
In: Pensar é transgredir, Lisboa, Presença, 2005
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