
Plantei na frente da minha
casa, uma trepadeira. Nome bonito: “Glória da Manhã”. Pensei que o ipê, que
neste período do ano está triste e sem cores, se alegraria se o seu tronco
cinza se cobrisse de flores azuis. E assim foi. As sementes germinaram rápidas,
os ramos cresceram esguios e sinuosos, e a rua se encheu logo de uma cor nova...
Acho esta flor
muito especial.
Primeiro, pela
beleza. Simetria pentagonal, quase circular. Uma única pétala, em forma de
cálice. E o azul claro, quase transparente. Ela se abre logo que o sol aparece.
Daí o seu nome, “Glória da Manhã”.
Isso tudo é
alegria. Walt Whitmann dizia que uma “Glória da Manhã” na sua janela lhe trazia
mais prazer que todos os livros de filosofia. Com o que eu concordo. Porque
aquela flor fala alguma coisa. Nós sempre conversamos...
Mas há uma
tristeza: é efêmera. Lá pelas doze horas, quando o calor é mais intenso,
começam a aparecer no azul sinistras estrias roxas, sinal de que o fim está
chegando. Sua vida não dura mais que sete horas. Logo a pétala se enruga,
murcha, enrola-se, torna-se toda roxa. Morreu. Nunca mais. Se o Vinícius a
tivesse visto talvez tivesse mudado o seu poema: “Não é eterna, posto que é
flor, mas é infinita enquanto dura...” Comove-me a sua tranqüila beleza pela
manhã – sem saber que em breve estará morta. Ou saberá? Talvez seja por isto
mesmo, por saber, que ela se abre com beleza tão intensa... Sabe que não há
tempo a perder, que é inútil lamentar, que só lhe resta ser bela. Fico pensando
se o mesmo não aconteceria conosco. Talvez, se percebêssemos que somos efêmeros
como a “Glória da Manhã”, seríamos tão belos quanto ela. Mas a manhã seguinte
nos reserva uma surpresa. Porque
a trepadeira que viu morrer, na véspera, as dezenas de flores que a cobriam, já
se havia preparado. E outras tantas se abrem de novo, ao nascer do sol,
repetindo a mesma beleza, a mesma tristeza, como se fosse um tema que se renova
sem cessar: vida e morte, vida e morte...
Gostaria de poder
ser como ela: viver intensamente o momento que me é dado, fiel apenas à beleza
que mora em mim.
Disse que plantei.
Ela nasceu, cresceu, floriu. Acho que alegrou muitos que por ali passaram. Mas
alguém se ofendeu com beleza tanta. E a arrancou. Tentei replantá-la, mas foi
inútil. A vida, por vezes, é assim. Dado o golpe letal, ela não se recupera.
Pensei nessa absurda assimetria entre a vida e a morte. A vida, para ser, leva
tempo, demanda paciência, exige cuidados, há que se esperar. Mas a morte vem
súbita e definitiva. Uma árvore leva anos a crescer. O machado a abate em
poucos minutos. Espantou-me uma coisa inesperada: que ela continuou a florescer
mesmo depois de cortada, por dois dias. Imaginei que o seu desejo de viver era
de tal forma intenso que ela ajuntou a pouca seiva que restara n os seus ramos
e floriu de novo, a mesma beleza, sem nenhuma mágoa, sem nenhum espinho.
Lembrei-me do poema da Cecília Meireles:
“Sede assim –
qualquer coisa serena, isenta, fiel. Flor que se cumpre sem pergunta”.
A morte
me entristeceu. Não a morte que acontece, depois de sete horas de vida, quando
a flor já cumpriu o seu destino. Mas a morte que mora na alma dos homens. De
que coisas não é capaz uma pessoa que destrói uma flor...
Mas não importa.
Guardei as sementes.
E já semeei de novo.
Em breve haverá uma
outra “Glória da Manhã”, em volta
do mesmo ipê.
É Domingo de Páscoa.
Triunfo da vida
sobre a morte.
Um bom dia para
semear uma flor...
Rubem Alves
In: Tempus Fugit, Rubem Alves, Ed. Paulus - páginas: 50 à 52.
Homenagem de minha querida prima Elo Portes Teixeira pela passagem de seu amigo Rubem Alves (15/09/1933 - 19/07/2014).
"Meu amigo... Vai na
Luz, com a Luz que você é! Mergulha na Luz que você sempre viu nos ipês e e em
todos os jardins da natureza... Segue para a Luz, a Fonte, na paz dos que
entregaram o coração ao amor, que você foi esse cara, meu amigo, você viveu o Amor como só você sabe... e Deus...
Pra viver a vida, você dizia, tinha que ter
"aligria". Sem "aligria" nada tem graça.. E você dizia
assim mesmo, com o seu sotaque mineirez, "aligria" . Não esqueço que
você me olhava e ria pra mim me dizendo que eu era uma "aligria"...
Pois é com a "aligria" que você via em mim, que eu te honro hoje meu
amigo lindo, mestre que me ensinou do que era e não só do que sabia... Guru dos
versos que iluminaram tantas escuridões das minhas ignorâncias.. Te amo amigo.
Amor é o elo eterno na roda da Vida que somos, para sempre..
Vê? É isso a eternidade... Você aí agora, e aqui
ainda, no meu coracão..
Estou na praia hoje, quando soube que você tinha se
transformado em pássaro dourado... De uma vez que você esteve aqui na praia, em
estado de amor, você me deixou de presente um barquinho de vidro colorido,
embrulhado numa cartinha que dizia que o amor é o melhor dos dons... Uma
canoinha com vela, pra ir no vento... Ah mestre canoeiro Rubem Alves, que
"dilícia" foi ser canoeira com você na terceira margem do rio de
nossas vidas ... Que profunda gratidão me invade o peito, meu amigo, por tudo o
que Os Canoeiros viveram ali, na beira do rio da poesia e do sentimento, junto
com você...
Com "aligria" te honro, amigo. Ergo as mãos
em bençãos do coracão ao primeiro voo seu nessa nova Vida, aí do outro lado.
Vai amigo lindo! Vai! Voa! Tudo está cumprido! Tudo está perfeito! Como um ipê
florido! Como um flamboyant vermelho na florada!
Namastê Rubem Alves! Namastê!"