segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Desenho, Cecília Meireles

Aquarela de Adriana Carvalho


Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão, e mirava a flor da goiaba.
E as lagartixas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam.
Isso era num lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas...
O eco, burlão, de pedra em pedra ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.
Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.
Como a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.
Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurrantes e eternos.
E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.
Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes! – aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.

Cecília Meireles, in 'Mar absoluto e outros poemas' Poesia Completa, Vol. 1, pag. 230.


Em carta de 1946 ao amigo poeta e ator Rui Affonso, Cecília dizia querer que a percebessem – “como uma criança antiga que a poesia de São Miguel no Açores nutriu, numa infância de sonho no regaço de uma avó dolorida, heróica e nobremente sentimental”.

Leia Mais

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Printfriendly