segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Chá & fantasmas, Luiz Alca de Sant´Anna



Gosto muito do poeta gaúcho Mário Quintana, uma das mais belas expressões poéticas do cotidiano, sem elaborações ou rebuscados. Com a passagem dos anos, foi entendendo melhor, é claro, algumas considerações importantes feitas sobre os nossos encontros com o amadurecimento. Como esta “Antes, todos os caminhos iam; agora, todos os caminhos vêm. A casa é acolhedora, os livros poucos. Eu mesmo preparo o chá para os fantasmas”. Só quem mora sozinho, só quem vive rodeado, sem apegos materiais, mas com imenso carinho, de seus objetos queridos e que dizem tanto, só quem guarda seus livros preferidos como tesouro precioso, é capaz de entender o que o poeta afirma. Tanto quanto diminui a ousada da ida e preserva os caminhos de volta. Mas o mais forte é chá para os fantasmas que me pega visceralmente. Também já tive medo de viver só, pavor de ouvir falar em manifestações de espíritos, descrença sobre os sinais. Admirava-me ver pessoas perderem pais e parceiros que habitavam a mesma casa e(ou) partilhavam a mesma cama e no dia seguinte, voltar para o mesmo local. “Será que não tem medo ou fica impressionada?”, julgava eu naquele estágio jovem de quem ainda não viveu o principal, embora se ache o máximo. Até que aconteceu comigo em duas grandes perdas. Depois de muitos altos e baixos, da saudade que permanece intacta, de conviver com a amargura da ausência que se alterna sem respeito ao calendário e ao linear, hoje também já preparo o chá para os meus fantasmas com o maior carinho, todo o cuidado e em vez de ter medo, curtindo minuto a minuto. Não se trata, de jeito nenhum, como poderão julgar alguns leitores desavisados, de morbidez. Muito pelo contrário. Convivo com as minhas lembranças e imagens do passado, com os meus espectros, numa boa. De vez em quando a memória navega, voltam as cenas bem humoradas, as trocas de afeto, os atos de amor. É quando rio, converso intimamente, até discuto certas dúvidas e inseguranças. Não raro, rodo pela casa, olho os retratos, os aprecio, dou um sorriso, uma piscada cúmplice. Por outro lado, já penso na minha existência como um todo, louvando tanto a infância e a juventude quanto a fase adulta, a maturação e também o que virá com o envelhecimento, sem me assustar ou fingir que comigo não acontecerá. Assumo a minha jornada como um todo, envolvo-me com os queridos que se foram e os santos ou mestres de devoção, não mais temo as sombras por trás da cortina, não me choca o silêncio e nem o estalar da madeira na quase ausência dos sons. Penso na morte como o evento natural que um dia, chegará, sem deseja-la e nem fugir da parca, embora louvando a vida e o privilégio de estar aqui. Tranquilamente, como Quintana, já preparo o chá para os meus fantasmas.
(05/08/2008) Republicado no Jornal A Tribuna em 08/09/2015.

Luiz Alca de Sant´Anna

HOMENAGEM AO DIA DE FINADOS

Luiz Gonzaga Alca de Sant´Anna (12/05/1947 - 01/09/2015)

Alca nasceu em Santos e era formado em Direito e Filosofia. Começou sua carreira em A Tribuna em 1978, na Editoria de Variedades, onde permaneceu até 1982. A partir deste ano, passou a escrever crônicas para o jornal. 
Há 15 anos, convidado pela então editora-chefe do jornal, Miriam Guedes, com quem já havia trabalhado na primeira passagem por A Tribuna, assumiu a coluna social no lugar de Thereza Bueno Wolf, que havia se aposentado. Na TV Tribuna, também atuava semanalmente no programa Viver Bem, exibido aos sábados.   
Na área literária, tem cinco livros publicados. O mais recente, Outra Face, lançado em 2008, reúne 100 crônicas, algumas já publicadas em A Tribuna. Escreveu ainda Começa Assim (1979), Quem quiser que conte outra (1982), Mudança de Conversa (1985) e Eu e minha Circunstância (1989). 

Alca faleceu aos 68 anos de infarto no dia 01/09/2015.

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