segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

Minhas memórias, Manoel de Barros

Pintura de Ivan Cruz, Puxando lata III


Remexo com um pedacinho de arame nas minhas memórias fósseis.
Tem por lá um menino a brincar no terreiro: entre conchas, osso de arara, pedaços de pote, sabugos, asas de caçarolas etc. 
E tem um carrinho de bruços no meio do terreiro. 
O menino cangava dois sapos e os botava a puxar o carrinho. 
Faz de conta que ele carregava areia e pedras no seu caminhão. 
O menino também puxava, nos becos de sua aldeia, por um barbante sujo umas latas tristes. 
Era sempre um barbante sujo. 
Eram sempre umas latas tristes. 
O menino é hoje um homem douto que trata com física quântica. 
Mas tem nostalgia das latas. 
Tem saudades de puxar por um barbante sujo umas latas tristes.
Aos parentes que ficaram na aldeia esse homem douto encomendou uma árvore torta – 
Para caber nos seus passarinhos. 

De tarde os passarinhos fazem árvore nele. 
Manoel de Barros

In:  Em Retrato Do Artista Quando Coisa XIV, Poesia Completa de Manoel de Barros, pg. 340 Editora Leya.

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